sexta-feira, 27 de maio de 2011

O amor como ele é


 "É fácil amar o outro na mesa de bar, quando o papo é leve, o riso é farto, e o chope é gelado.

É fácil amar o outro nas férias de verão, no churrasco de domingo, nas festas agendadas no calendário do de vez em quando.

Difícil é amar quando o outro desaba. Quando não acredita em mais nada. E entende tudo errado. E paralisa. E se vitimiza. E perde o charme. O prazo. A identidade. A coerência. O rebolado.

Difícil amar quando o outro fica cada vez mais diferente do que habitualmente ele se mostra ou mais parecido com alguém que não aceitamos que ele esteja.

Difícil é permanecer ao seu lado quando parece que todos já foram embora. Quando as cortinas se abrem e ele não vê mais ninguém na plateia. Quando o seu pedido de ajuda, verbalizado ou não, exige que a gente saia do nosso egoísmo, do nosso sossego, da nossa rigidez, do nosso faz-de-conta, para caminhar humanamente ao seu encontro.

Difícil é amar quem não está se amando.

Mas esse talvez seja, sim, o tempo em que o outro mais precisa se sentir amado. Eu não acredito na existência de botões, alavancas, recursos afins, que façam as dores mais abissais desaparecerem, nos tempos mais devastadores, por pura mágica. Mas eu acredito na fé, na vontade essencial de transformação, no gesto aliado à vontade, e, especialmente, no amor que recebemos, nas temporadas difíceis, de quem não desiste da gente."

Por ANA JÁCOMO

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Sobre as escolhas.

A gente não escolhe sentir, mas escolhe o que vai fazer com o sentir. E a escolha que a gente faz é o que faz a diferença.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Psicossomático: texto completo

"O resfriado escorre quando o corpo não chora. A dor de garganta entope quando não é possível comunicar as aflições. O estômago arde quando as raivas não conseguem sair. O diabetes invade quando a solidão dói. O corpo engorda quando a insatisfação aperta. A dor de cabeça deprime quando as duvidas aumentam. O coração desiste quando o sentido da vida parece terminar. A alergia aparece quando o perfeccionismo fica intolerável. As unhas quebram quando as defesas ficam ameaçadas. O peito aperta quando o orgulho escraviza. O coração enfarta quando chega a ingratidão. A pressão sobe quando o medo aprisiona. As neuroses paralisam quando a "a criança interna" tiraniza. A febre esquenta quando as defesas detonam as fronteiras da imunidade."

Autor desconhecido. Se alguém souber quem escreveu, me avise.

Perfeccionismo


Está funcionando bem esse período de auto-descoberta, ou auto-conhecimento. Minha forma de agir, ou de reagir, ou se sentir, tem ficado cada vez mais clara pra mim. Isso me assusta um pouco, mas me sinto mais forte, mais verdadeira.

Estava lendo aqui no blog, postei um dia: "A alergia aparece quando o perfeccinismo fica intolerável", mas não tinha me dado conta do quanto isso é realmente a minha cara. E não só porque minhas alergias estão tão evidentes, um pouco mais a cada dia; porque também, mais evidente que elas, é o meu perfeccionismo, que tanto tem me sufocado. Uma necessidade de estar sempre certa, de fazer sempre o melhor, de não errar, de não fracassar.

Cheguei à conclusão de que não sei abrir mão do controle... contro;e sobre a vida, sobre as pessoas, sobre os sentimentos, sobre o incontrolável! E, mesmo sendo muito "coração",  pondero as coisas em demasia, e daí a minha fama de "racional". Não há nada errado em ponderar, mas faço isso mais do que deveria. É preciso ter o momento de chutar o balde, de se permitir.... de errar!  Mas não, só faço o que é certo, me atenho ao politicamente correto, mesmo que não seja o que eu quero! Abro mão do que quero pelo que é melhor, ou equilibrado...

Os sentimentos? Nossa, sou um desastre pra lidar com eles. Quando dou uma brecha pro sentimento, parece que tudo dá errado... então, fico querendo me manter fora de confusão, controlando tudo por meio de deciões devidamente pensadas. Mas não sei bem o timming disso aí. Então, quando resolvo baixar a guarda, realmente as coisas dão errado e eu fico me culpando por ter me permitido.... e pensando: "tá vendo? Eu deveria ter feito isso, isso e aquilo, sabia que ia dar merda".... (me vejo pensando isso).

Hoje, olhando pra mim, penso: tenho que relaxar mais! Cobrar menos de mim, ser menos perfeita, descer do salto, deixar as coisas fluirem com leveza e naturalidade, ser mais boba e menos politicamente correta, ser mais sentimento e menos razão, perder as estribeiras, morrer de amor, fazer besteira, quebrar a cara, passar vergonha.... errar, levantar e seguir em frente de novo, com alegria, sem que isso me incomode tanto. Preciso aprender a  lidar com o fracasso, com a frustração....

Não há problema algum em fazer papel de bobo!

A música como produto

Escrevo esse texto mais como um desabafo do que, propriamente, com o propósito de argumentação. Trata-se de um assunto delicado, que envolve temas como música, arte, marketing, comércio, profissão e sobrevivência. Por isso, não se esgota aqui; ao contrário, é apenas o início de um debate que precisa ser amadurecido em nossa sociedade.

Contextualizando: tudo começou com um vídeo musical que virou febre na internet. A música chamada "Oração" da banda curitibana “a banda mais bonita da cidade” foi postada na internet na semana passada, via You Tube, e já teve mais de um milhão de visualizações, além de ter se tornado um "viral" em meio às redes sociais. Os jovens músicos apostaram no “fofo” e no “meigo” na letra e melodia de “Oração” e – motivo de polêmica – praticamente “copiaram” o também conhecido clipe da banda Beirut (veja aqui o video da banda Beirut), assumindo na descrição do vídeo (postado abaixo): “é, a gente adora Beirut mesmo”. Veja:



As críticas vieram tão rapidamente quanto aos elogios. Se milhares de pessoas “curtiram” e compartilharam, por outro lado, alguns acusavam a banda de “bobinha”, por seu estilo alegre. Um dos internautas arriscou o depoimento “essas bandas "moderninhas" parecem querer habitar um plano mais elevado que o nosso, fazendo (sempre) alguma coisa simples-doce-meiga-ingênua-cult...” e continua “todas são mais ou menos parecidas (até essa tal Beirut) e veneradas por um grupo que é igual à banda, do corte de cabelo ao discurso... fica aquela atitude (?) blasé "vamos tocar na rua/praça pública porque é cult”. Outros, indignados com o suposto plágio, atacavam os jovens que tentam fazer uma música.... para vender!

Aqui entramos no foco da discussão que gostaria de propor. Primeiramente, quero ressaltar: não vamos entrar na questão de gosto musical, porque cada um tem um. O meu, por exemplo, é tão eclético que vai de música clássica, como Mozart, Vivaldi e Chopin ao som pesado de Rage Against The Machine, passando por bandas alternativas como Camera Obscura, tristes como Nick Drake, de rock como Dave Matthew's Band, politizadas como Moby, “bregas” como Belchior, de black metal como Burzum amplamente conhecidas, como Rolling Stones. Escuto o que agrada meus ouvidos, sem rótulos e sem levantar bandeiras. E confesso: gostei da música Oração.

Mas a questão é que a banda, que a princípio fez uma música “comercial”, foi atacada por alguns que dizem não se tratar de arte. Aqui, aproprio de algumas palavras que encontrei pela internet para descrever o que penso: “Existe arte e existe entretenimento. Qual é o problema de existirem os dois? E quem falou que a banda visava criar um objeto de arte? Eu não sei”. Se visavam ou não, eu também não sei, mas isso não desmerece o que fizeram, na minha opinião. Quiseram criar uma música e divulgá-la; quiseram tornar-se conhecidos. Seria pretensão julgar os trabalhos de outros e classificá-los ou não como arte; com base em que?

Acho atrasada a discussão que alguns grupos levantam de que só são “bons” aqueles que não fazem músicas “comerciais”. Ora, todo músico quer ter suas músicas conhecidas, nem que seja em meio a um público segmentado. Se não, tocariam por “arte” ou por mero prazer nas garagens de suas casas, e não se esforçariam para publicar vídeos na internet ou criar perfis no My Space, ou divulgar músicas pelo FaceBook. Então, não dá para fazer música só para si mesmo e cair no argumento (este sim, blasé) de que “minha música é para poucos”.

Claro que, infelizmente, nem tudo que vende é bom (na minha modesta opinião, 10% ou menos do que é amplamente vendido e divulgado é bom). Temos muitas bandas e cantores que são frutos de uma bela produção de marketing e não fariam um bom som ao vivo porque não são músicos de verdade. Mas, também, nem tudo que é underground é bom! E nem tudo que vende é ruim! Falta um pouco de raciocínio lógico aqui: existe um grupo enorme de boas músicas e bons músicos; dentro deste grupo, existem subgrupos: das músicas comerciais, das músicas não comerciais. Estes dois, também se subdividem, e assim sucessivamente. Assim, uma coisa não exclui a outra: ser bom não é sinônimo de não ser comercial, a exemplo de bandas belíssimas e famosas, como The Doors, The Beatles, dentre outas. É questão de gosto!

Tenho amigos músicos e vejo da seguinte forma: ser músico é uma profissão como outra qualquer, e faz-se necessário algum sacrifício. Para obter sucesso, muitas vezes é preciso sim abrir mão da vaidade e apostar em algo que vai vender (aqui não vamos entrar na discussão da ética, para não nos estendermos demais no assunto). Essa é uma forma eficaz de ter o trabalho reconhecido, de maneira a também promover as chamadas músicas “lado b”, geralmente mais interessantes.

Antigamente, ficávamos reféns das gravadoras e de suas vontades, que gravavam e divulgavam somente o que era vendável. Isso sim era uma limitação terrível. Hoje em dia, agradeço por termos a internet como forma democrática de divulgação de trabalhos para os artistas e de acessibilidade para os interessados. Ouvimos o que queremos, desde as bandas mais conhecidas até as bandas de garagem, graças a essa democratização da informação e do desenvolvimento de tecnologias nos meios de comunicação. É um avanço, e outros avanços estão por vir. Então, creio eu que devemos deixar para trás o pensamento atrasado, polarizado, estilo guerra fria, como se realmente estivéssemos entre bons e maus.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Quando trair faz bem

Uma fábula moral, mas ao contrário.

Por Ivan Martins, para a Revista Época (clique aqui para ler).

O celular tocou por volta das oito da noite. Quando vi quem era, soube do que se tratava mesmo antes de atender. “Eu estou jantando com você, tá?”, disse uma voz de mulher. Eu concordei sem fazer perguntas. Foi a única vez que uma amiga, não um amigo, ligou para pedir um álibi. Ela iria sair com um sujeito, era casada e, caso precisasse mentir em casa, queria usar meu nome. Não precisou.

Eu vinha acompanhando o caso há semanas.

A amiga estava às voltas com um sujeito que mexia com os sentimentos dela. Eles haviam se conhecido durante uma viagem de avião e estabeleceram nos meses seguintes uma relação de enorme intimidade. Conversavam por telefone várias vezes ao dia, almoçavam pelo menos uma vez por semana e trocavam emails, dezenas de emails, cheios de desejo sublimado. A cumplicidade só não incluía sexo.

No momento em que eu soube da história, a amiga já estava a ponto de ligar para ele, que também era casado, nas noites de sábado e domingo. O convívio com o marido estava se tornando difícil. Ela pensava no outro, desejava o outro, sentia falta do outro. Veio desabafar comigo, perguntou o que eu achava. Nós nos conhecíamos desde antes do casamento dela e eu sabia da sinceridade e da intensidade dos seus sentimentos. Aquela mulher não iria conviver com ambiguidades por muito tempo.

Para mim, a questão era óbvia: o desejo pelo outro estava arruinando o casamento dela. Ela disse que se sentia parte de uma relação sólida e feliz até conhecer o cara do avião. Agora já não tinha mais certeza. Àquela altura, me pareceu que havia três possibilidades.

A primeira era virar as costas para o desejo, cortar relações com o cara que o provocava, ater-se ao casamento e viver com as consequências emocionais dessa decisão, que não me pareciam promissoras. Pensei nisso como a solução heróica. A outra possibilidade era contar ao marido o que estava acontecendo e correr o risco óbvio de que ele, magoado, saísse de casa para não mais voltar. Era o sincericídio. A terceira, claro, era transar com o sujeito e descobrir o que vinha depois.

Na época me pareceu – e eu disse isso a ela – que a solução menos danosa era a terceira. Se toda aquela comoção fosse apenas luxúria, se todo aquele romance fosse só uma projeção do desejo, ela perceberia depois de transar. Sexo (ao menos para os homens) ajuda a dar dimensão real a sentimentos que, de outra forma, crescem até se tornarem fantasias asfixiantes. Era o que estava acontecendo com a minha amiga.

Havia também a possibilidade de que ela sentisse, depois de transar, que queria mesmo o tal sujeito – e, nesse caso, seria covardia fugir do sentimento, não? Em assuntos de tal gravidade, antes de ser leal a qualquer outra pessoa convém ser verdadeiro consigo mesmo, eu acho.

Enfim, ela e eu falamos algumas vezes sobre o impasse, mas a situação não parecia se resolver com palavras ou resoluções. Por isso eu entendi imediatamente quando o telefone tocou. Ela havia decidido correr o risco.

Essa história tem alguns anos, mas eu ainda consigo ver as sobrancelhas grossas da amiga, seu sorriso constrangido com a situação. Ela não era especialmente bonita, mas chamava a atenção em qualquer ambiente pela sensualidade e pela alegria. Tinha tido desde muito jovem uma vida afetiva e sexual intensa. Casara-se aos 30 e dizia estar pronta para o compromisso. Mas, cinco anos depois, no momento em que ela e o marido discutiam a possibilidade de ter filhos, apareceu o tal sujeito. Alto, falante e sedutor, segundo ela me disse, parecia o oposto do parceiro dela, que era reservado e irônico. Seria natural que ela achasse o contraste excitante, mas deixar-ser envolver daquele jeito... Enfim, nada mais fácil do que julgar os sentimentos dos outros.

Por uma semana depois daquele telefonema de cúmplice, minha amiga sumiu. Quando ligou de novo, era outra pessoa. Me chamou para almoçar e contou quase tudo.

Fiquei sabendo que a noite de infidelidade fora “boa”. Ela fizera reserva num hotel no centro da cidade e convocara o fulano. Quando ele chegou, havia no quarto champagne gelada e uma mulher nervosa, mas determinada. Sem me contar detalhes, disse que o sexo fora como ela imaginara. Melhor, até. Mas, cinco minutos depois, quando ela voltou do banheiro, ficou claro: a mágica tinha evaporado junto com o tesão. Resolvida a curiosidade física, ela sentiu que não tinha mais nada a fazer ali. Não estava apaixonada coisíssima nenhuma. Teve vergonha da própria nudez e da nudez do outro. Sentiu urgência de voltar para casa. Foi tomada por um medo terrível, quase pânico, de que o marido descobrisse. Só conseguia pensar – na verdade, ela me disse, tinha vontade de gritar – o quanto gostava do marido.

Se a vida fosse um filme americano ou uma parábola bíblica, sua transgressão teria sido punida com um flagrante ou um acidente terrível, que tornaria explícita a natureza abominável do seu ato – e a punição inevitável dos céus. Mas a vida foi melhor do que isso.

Ela voltou para casa apreensiva, mas sentia-se melhor do que antes. Deixara para trás uma dúvida capaz de envenenar seu casamento e seu espírito. Estava mais segura dos seus sentimentos. Nos dias seguintes, o sexo com o marido melhorou sem que ele entendesse por quê. O casal voltou a discutir a possibilidade de ter filhos. Isso aconteceu faz alguns anos e eu paro de contar por aqui.

Na semana passada eu tinha dito que a traição, às vezes, pode fazer bem. Neste caso, fez. Se a minha amiga descobrisse que amava o outro sujeito, teria sido bom também. A verdade é importante. Mais importante, em algumas situações, do que as regras que nós inventamos há milênios para nos proteger da dor e da solidão.

As mulheres e o horóscopo

Não sei porque tenho esse péssimo hábito de ler horóscopo de vez em quando, principalmente quando tenho insegurança sobre algo da vida. Que coisa de mulherzinha, né? "Ai, vou ler a previsão do meu signo". Não sei o que é pior, se é ler ou acreditar. Aí vem aquelas previsões mefistofélicas, estranhas, abstratas, e é claro que me deixam ainda mais insegura. Putz, pra que ler então?

#revoltadacomohoroscopo.

domingo, 15 de maio de 2011

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Conto: Descobrindo-se parte II

Após o ritual pós banho, foi para o quarto para vestir-se. Não queria nada muito chamativo, preferia passar despercebida naquele momento, já que estava mesmo introvertida. Mas queria se sentir bonita e arrumada, não para que o mundo a admirasse, mas para si mesma, para que pudesse se ver e se admirar e apaixonar-se de novo por si mesma...  "eu mereço", pensou. 

O tempo estava frio, no clima do outono. Escolheu roupas íntimas confortáveis, de algodão, em tons de verde. Colocou uma meia-calça grossa de cor preta, saia xadrez de marrom e preto e uma blusa preta justa de gola alta, para tampar do frio. No pescoço, enrolou um cachecol preto de lã que havia ganhado de uma amiga muito querida que tinha se mudado para a Austrália... "que saudades da Amanda", pensou enquanto ajeitava o acessório. Fez uma maquiagem leve, apenas para realçar os traços, secou os cabelos para não sentir frio, calçou uma bota preta de saltos altos e saiu levando consigo uma bolsa pequena, de tamanho suficiente para levar seus documentos, cartões e algum dinheiro. Deixou o celular em casa.

Laura era o nome dela. Apesar de gostar de seu próprio nome, achava estranho quando alguém o pronunciava assim "Laura", parecia que estavam brigando. Preferia Lau, Laurinha, algo que soasse menos formal. Pensou nisso enquanto descia pelo elevador e saía pelo portão do prédio, localizado em um ponto privilegiado por ter por perto vários bares, restaurantes, shoppings, padarias, farmácias e todo tipo de comércio que precisava. Tinha várias opções naquele momento.

Ao dar os primeiros passos pela calçada, pensou que seria mais interessante se fosse ao cinema; afinal, como sentar sozinha e pensativa na mesa de um bar cheio de gente? Seria assediada demais, ou pareceria incrivelmente deprimida ou abandonada. Se ainda fosse um Café, onde pudesse ler e pensar enquanto bebericava uma taça de vinho, ok. Um bar, não.

Havia, a uns cinco ou seis quarteirões da casa dela, um cinema que gostava muito, com ar mais reservado e filmes mais alternativos, não tão "hollywoodianos" quanto os dos cinemas dos shoppings. Neste cinema havia um Café onde as pessoas ficavam para esperar os horários dos filmes ou para conversar sobre eles. Seria perfeito: uma caminhada tranquila até o cinema, durante a qual poderia pensar um pouco na vida, e um filme interessante; depois, comeria algo antes de voltar pra casa. "Pego um táxi depois, se ficar muito tarde", concluiu, finalizando o planejamento de sua noite.

Olhos para frente e seguiu caminhando....

Nossa, quanto tempo não caminho sozinha, não saio sozinha.... tinha até me esquecido como é bom ficar comigo mesma... aliás, ficar comigo mesma... hum, hoje termino a noite com um filminho pornô na internet, vou transar comigo mesma pra fechar com chave de ouro esse momento... Hum, delícia, será que meu notebook tem bateria suficiente pra assistir o filminho deitada na cama? Usei muito a bateria dele hoje para enviar aqueles emails para aquele mala... ai, que saco, é só descuidar e já começo a pensar em trabalho e nessas coisas chatas que me perturbam. Mas acho que tem sim, acho que a bateria ainda dura uns 40 minutos, também não preciso ficar uma hora com notebook ligado, vou estar cansada, resolvo em 30 minutos, no máximo.. Hum, se bem que seria bom não ficar preocupada com a bateria, vou ligar pra Carol e pedir pra ela colocar o notebook pra carregar, mas que desculpa vou dar? Ah, não preciso de desculpas, qualquer coisa eu falo que quero ouvir música antes de dormir, sei lá, invento uma coisa qualquer, sou boa nisso. A Carol anda desligada ultimamente, nem vai perguntar nada, está no mundo da lua por causa do Paulo, tá apaixonada... espero que ela não sofra, essa coisa de se entregar muito dá um medo, sei lá, a gente fica vulnerável... mas Carol não sabe ser metade, ela se joga nos relacionamentos, é uma fofa, mas é bem idealista também, ela deveria se cuidar mais, ou talvez ela esteja certa, ficar com medo por que? Melhor viver intensamente do que depois se arrepender de não ter vivido tudo.... Nossa, que calçada mais irregular, coisa chata andar de salto nessa calçada, as calçadas deveriam ser retas e sem buracos, iguais aos pisos das casas. Se o Léo estivesse aqui, já estaria xingando o governo, que não cuida das calçadas... mas o Léo não serve de base, ele reclama de tudo, tudo é culpa dos outros.. do governo, dos pais dele, minha... odeio quando ele coloca a culpa em mim das coisas que acontecem entre a gente! Léo é muito mimado, isso sim, a mãe fica paparicando e fazendo as vontades dele, e como eu não faço igual ele fica reclamando de mim, fico parecendo a chata da história... tá ficando desgastante já essa história, tenho ficado tão irritada com o Léo! Que ódio quando ele fala qualquer coisa, me liga naquele tom de  "tô nem aí " , sei lá, descaso. Nossa, que moça gentil, obrigada moça!... Hoje em dia é tão difícil os carros darem passagem para os pedestres que quando alguém faz isso fico com medo de ser pegadinha... , na verdade falta gentileza no trânsito. Falta gentileza na vida, todo mundo só se preocupa em se dar bem, só com o próprio umbigo... ai, tô reclamando que nem o Léo, que saco isso, convivência é foda, a gente  pega até as manias que não quer pegar, nossa, que cara bonito, que casal bonito, que menina mais bonita, andar por aqui é tão bom, só gente bonita, fiz bem em sair hoje sozinha, pra ver gente, preciso ver gente, delícia, depois do filme vou tomar um vinho sozinha, tô nem aí.....  bom que dá pra pensar no filme e até conhecer alguma pessoa interessante que esteja por lá, trocar ideias, lá sempre tem pessoas tão legais.. quanto tempo não vou lá, nossa, o Léo não gosta de cinema e muito menos de lá, aliás, ele não gosta de nada que seja meio cult, acha esse povo chato, eu adoro... adoro climinha alternativo... o Léo é um chato mesmo, tem horas que somos tão diferentes... será que é isso mesmo que eu quero pra mim? Ai, que roupa linda nessa vitrine, meodeos, que linda, nossa, vou vir aqui amanhã, aproveitar que está em promoção, nossa, é a minha cara essa roupa...  nossa, tô começando a sentir calor com esse cachecol... mas também, caminhar esquenta o corpo, daqui a pouco entro no cinema e sinto frio, me conheço, sou frienta, só estou sentindo calor porque vim andando, que bom que está chegando, quero assistir um bom filme, será o que deve estar passando? Deveria ter olhado na internet antes de sair... se bem que é bom assim, sem escolher antes, sem planejar, talvez algum dos filmes me surpreenda, os filmes de lá são sempre bons, pelo menos me faz pensar na vida, na minha vida... tô precisando pensar na minha vida, ando tão consumida pela vida cotidiana, tá difícil pensar na vida, não posso deixar as coisas passarem assim não, coisa de gente alienada, sempre fui tão engajada, intelectual... só depois que comecei a namorar o Léo é que parei de fazer essas coisas que gosto, pensar na vida, ir ao cinema cult, ler meus livros...  que coisa, ultimamente só saio pra buteco, mas tá bom, um buteco é sempre bom, aliás, vou ver se as meninas animam um buteco nesse final de semana, pra conversar fiado, tô precisando de uma folga do Léo, não quero sair com ele no sábado, vou ligar pra Lorena, a gente articula, chama todo mundo, a Flor, a Joana, Claudinha e Aline, um encontro só de mulheres, sem os namorados, ai, a-do-ro... ué, engraçado, não tinha reparado esse bar aqui nessa rua, será que é novo? Parece que sim, depois quero vir aqui, vou chamar o Léo, é bar pra casal, as meninas não vão querer vir aqui sem os respectivos, certeza, mas de repente a gente marca uma saída com alguns casais, gostei daqui, acho que o Léo não vai gostar, aposto que vai falar que é chiliquento, Léo é chato demais, aqui deveria ter faixa de pedestre, que dificuldade para atravessar a rua! Nossa, será que aquilo é fila pro cinema? Ou será apenas um aglomerado de fumantes? Agora que não se pode fumar dentro dos lugares o povo fica tudo na porta pra fumar... não entendo essa coisa de fumar, credo, Deus me livre, ai, que bom que cheguei, caminhada boa!

Conto: Descobrindo-se - parte I

Por: Thais Wadhy


Já era tarde quando ela decidiu sair de casa para se distrair um pouco, deixar de pensar nos problemas. Estava se sentindo ansiosa demais devido aos últimos acontecimentos: atritos no trabalho, sobrecarga de responsabilidades (sentia até os ombros mais pesados do que deveria), desentendimentos no relacionamento. Quando pensava no relacionamento, ficava ainda mais angustiada; havia algo errado, ela sentia com sua intuição feminina, mas não sabia dizer ao certo o que era. Tinha coisas por trás das brigas banais, alguma subjetividade, alguma coisa mal resolvida; mas o que?  Para pensar melhor, queria sair. "Sozinha", pensara. Então ligou para o namorado:

- Oi, linda - atendeu ele do outro lado, com a voz um tanto entediada, jurando que o telefonema seria para conversar mais uma vez. Detestava conversar por telefone e discutir a relação.
- Oi. Estou ligando pra avisar que vou dar uma volta - respondeu ela, fingindo não perceber o tom da voz que ela não gostava que ele fizesse, pois parecia estar culpando-a pelos problemas.
- Dar uma volta? Estou em casa, cansado. Trabalho amanhã cedo.
- Eu sei, eu vou sozinha. Vou dar uma volta.
- Dar uma volta sozinha? - Perguntou, desconfiado. Ela nunca queria sair sozinha. - Está doida? Vai sair sozinha a essa hora? 
- Vou, preciso pensar um pouco na vida, espairecer. Vou dar uma volta, estou ligando pra avisar.
- 'Tá bom então. Vai aonde? - Aquilo era muito estranho pra ele, que sempre esteve acostumado com o jeito caseiro da namorada.
- Não sei....   beijo, boa noite - Disse ela, querendo colocar um fim na conversa. Não estava a fim de muitas explicações.
- Beijo, boa noite. Qualquer coisa, me liga.

Qualquer coisa me liga? O que foi aquilo? Pensou ela, percebendo as palavras vazias do namorado, sem significado. Quer coisa mais vaga do que "qualquer coisa, me liga"?  Mas não estava nem um pouco disposta a pensar sobre as palavras dele, que quase sempre nessas horas representavam um "ahan pra não render".

Entrou no banheiro, olhou-se no espelho. Reparou em seus olhos cor de mel, levemente puxados, em sua boca bem feita, no nariz arrebitado e até nas marcas de expressão, que demonstravam para o mundo que já não era mais uma menina. Sentiu-se bonita, há tempos não se sentia assim. Analisou-se de frente, de perfil, esticou a pele do rosto para ver como ficava lisinha, sorriu para si mesma. Tirou a calça jeans surrada que tanto gostava de usar,  a camisa xadrex acinturada e a lingerie lilás, soltou os longos cabelos castanhos que exibiam poucas mechas mais claras, da cor de seus olhos. Ficou na pontas dos pés para ver seu corpo inteiro, ou pelo menos do joelho pra cima; admirou suas curvas, de frente e de perfil. Murchou um pouco a barriga pra ver como ficava se estivesse um pouco mais magra. "Se eu perder uns 2kg, vai ficar ótimo", pensou, como toda mulher pensaria. Então olhou sua bunda pelo espelho, checou os pelos das axilas, conferiu se havia algum cravo para ser retirado e, sentindo-se pronta, rumou para o banho.

Ligou o chuveiro, deixou a água cair em seu rosto, como se pudesse limpar a alma. Fechou os olhos para se desligar do mundo e, mais uma vez, sentiu um peso nas costas. Para aliviar, virou-se de costas e deixou a ducha massagear seus ombros. Então lavou-se vagarosamente, curtindo o deslizar de suas mãos ensaboadas pelo corpo. Arrepiou com seu próprio toque, o bico dos seios endurecidos. "Tesão acumulado", pensou ela, que há alguns dias não transava com seu namorado por causa dos atritos das últimas semanas. Então, para não se entreter demais no chuveiro, desligou-o. Enxugou-se lentamente, hidratou o corpo com uma loção de cheiro suave e foi para o quarto para vestir-se.