Após o ritual pós banho, foi para o quarto para vestir-se. Não queria nada muito chamativo, preferia passar despercebida naquele momento, já que estava mesmo introvertida. Mas queria se sentir bonita e arrumada, não para que o mundo a admirasse, mas para si mesma, para que pudesse se ver e se admirar e apaixonar-se de novo por si mesma... "eu mereço", pensou.
O tempo estava frio, no clima do outono. Escolheu roupas íntimas confortáveis, de algodão, em tons de verde. Colocou uma meia-calça grossa de cor preta, saia xadrez de marrom e preto e uma blusa preta justa de gola alta, para tampar do frio. No pescoço, enrolou um cachecol preto de lã que havia ganhado de uma amiga muito querida que tinha se mudado para a Austrália... "que saudades da Amanda", pensou enquanto ajeitava o acessório. Fez uma maquiagem leve, apenas para realçar os traços, secou os cabelos para não sentir frio, calçou uma bota preta de saltos altos e saiu levando consigo uma bolsa pequena, de tamanho suficiente para levar seus documentos, cartões e algum dinheiro. Deixou o celular em casa.
Laura era o nome dela. Apesar de gostar de seu próprio nome, achava estranho quando alguém o pronunciava assim "Laura", parecia que estavam brigando. Preferia Lau, Laurinha, algo que soasse menos formal. Pensou nisso enquanto descia pelo elevador e saía pelo portão do prédio, localizado em um ponto privilegiado por ter por perto vários bares, restaurantes, shoppings, padarias, farmácias e todo tipo de comércio que precisava. Tinha várias opções naquele momento.
Ao dar os primeiros passos pela calçada, pensou que seria mais interessante se fosse ao cinema; afinal, como sentar sozinha e pensativa na mesa de um bar cheio de gente? Seria assediada demais, ou pareceria incrivelmente deprimida ou abandonada. Se ainda fosse um Café, onde pudesse ler e pensar enquanto bebericava uma taça de vinho, ok. Um bar, não.
Havia, a uns cinco ou seis quarteirões da casa dela, um cinema que gostava muito, com ar mais reservado e filmes mais alternativos, não tão "hollywoodianos" quanto os dos cinemas dos shoppings. Neste cinema havia um Café onde as pessoas ficavam para esperar os horários dos filmes ou para conversar sobre eles. Seria perfeito: uma caminhada tranquila até o cinema, durante a qual poderia pensar um pouco na vida, e um filme interessante; depois, comeria algo antes de voltar pra casa. "Pego um táxi depois, se ficar muito tarde", concluiu, finalizando o planejamento de sua noite.
Olhos para frente e seguiu caminhando....
Nossa, quanto tempo não caminho sozinha, não saio sozinha.... tinha até me esquecido como é bom ficar comigo mesma... aliás, ficar comigo mesma... hum, hoje termino a noite com um filminho pornô na internet, vou transar comigo mesma pra fechar com chave de ouro esse momento... Hum, delícia, será que meu notebook tem bateria suficiente pra assistir o filminho deitada na cama? Usei muito a bateria dele hoje para enviar aqueles emails para aquele mala... ai, que saco, é só descuidar e já começo a pensar em trabalho e nessas coisas chatas que me perturbam. Mas acho que tem sim, acho que a bateria ainda dura uns 40 minutos, também não preciso ficar uma hora com notebook ligado, vou estar cansada, resolvo em 30 minutos, no máximo.. Hum, se bem que seria bom não ficar preocupada com a bateria, vou ligar pra Carol e pedir pra ela colocar o notebook pra carregar, mas que desculpa vou dar? Ah, não preciso de desculpas, qualquer coisa eu falo que quero ouvir música antes de dormir, sei lá, invento uma coisa qualquer, sou boa nisso. A Carol anda desligada ultimamente, nem vai perguntar nada, está no mundo da lua por causa do Paulo, tá apaixonada... espero que ela não sofra, essa coisa de se entregar muito dá um medo, sei lá, a gente fica vulnerável... mas Carol não sabe ser metade, ela se joga nos relacionamentos, é uma fofa, mas é bem idealista também, ela deveria se cuidar mais, ou talvez ela esteja certa, ficar com medo por que? Melhor viver intensamente do que depois se arrepender de não ter vivido tudo.... Nossa, que calçada mais irregular, coisa chata andar de salto nessa calçada, as calçadas deveriam ser retas e sem buracos, iguais aos pisos das casas. Se o Léo estivesse aqui, já estaria xingando o governo, que não cuida das calçadas... mas o Léo não serve de base, ele reclama de tudo, tudo é culpa dos outros.. do governo, dos pais dele, minha... odeio quando ele coloca a culpa em mim das coisas que acontecem entre a gente! Léo é muito mimado, isso sim, a mãe fica paparicando e fazendo as vontades dele, e como eu não faço igual ele fica reclamando de mim, fico parecendo a chata da história... tá ficando desgastante já essa história, tenho ficado tão irritada com o Léo! Que ódio quando ele fala qualquer coisa, me liga naquele tom de "tô nem aí " , sei lá, descaso. Nossa, que moça gentil, obrigada moça!... Hoje em dia é tão difícil os carros darem passagem para os pedestres que quando alguém faz isso fico com medo de ser pegadinha... , na verdade falta gentileza no trânsito. Falta gentileza na vida, todo mundo só se preocupa em se dar bem, só com o próprio umbigo... ai, tô reclamando que nem o Léo, que saco isso, convivência é foda, a gente pega até as manias que não quer pegar, nossa, que cara bonito, que casal bonito, que menina mais bonita, andar por aqui é tão bom, só gente bonita, fiz bem em sair hoje sozinha, pra ver gente, preciso ver gente, delícia, depois do filme vou tomar um vinho sozinha, tô nem aí..... bom que dá pra pensar no filme e até conhecer alguma pessoa interessante que esteja por lá, trocar ideias, lá sempre tem pessoas tão legais.. quanto tempo não vou lá, nossa, o Léo não gosta de cinema e muito menos de lá, aliás, ele não gosta de nada que seja meio cult, acha esse povo chato, eu adoro... adoro climinha alternativo... o Léo é um chato mesmo, tem horas que somos tão diferentes... será que é isso mesmo que eu quero pra mim? Ai, que roupa linda nessa vitrine, meodeos, que linda, nossa, vou vir aqui amanhã, aproveitar que está em promoção, nossa, é a minha cara essa roupa... nossa, tô começando a sentir calor com esse cachecol... mas também, caminhar esquenta o corpo, daqui a pouco entro no cinema e sinto frio, me conheço, sou frienta, só estou sentindo calor porque vim andando, que bom que está chegando, quero assistir um bom filme, será o que deve estar passando? Deveria ter olhado na internet antes de sair... se bem que é bom assim, sem escolher antes, sem planejar, talvez algum dos filmes me surpreenda, os filmes de lá são sempre bons, pelo menos me faz pensar na vida, na minha vida... tô precisando pensar na minha vida, ando tão consumida pela vida cotidiana, tá difícil pensar na vida, não posso deixar as coisas passarem assim não, coisa de gente alienada, sempre fui tão engajada, intelectual... só depois que comecei a namorar o Léo é que parei de fazer essas coisas que gosto, pensar na vida, ir ao cinema cult, ler meus livros... que coisa, ultimamente só saio pra buteco, mas tá bom, um buteco é sempre bom, aliás, vou ver se as meninas animam um buteco nesse final de semana, pra conversar fiado, tô precisando de uma folga do Léo, não quero sair com ele no sábado, vou ligar pra Lorena, a gente articula, chama todo mundo, a Flor, a Joana, Claudinha e Aline, um encontro só de mulheres, sem os namorados, ai, a-do-ro... ué, engraçado, não tinha reparado esse bar aqui nessa rua, será que é novo? Parece que sim, depois quero vir aqui, vou chamar o Léo, é bar pra casal, as meninas não vão querer vir aqui sem os respectivos, certeza, mas de repente a gente marca uma saída com alguns casais, gostei daqui, acho que o Léo não vai gostar, aposto que vai falar que é chiliquento, Léo é chato demais, aqui deveria ter faixa de pedestre, que dificuldade para atravessar a rua! Nossa, será que aquilo é fila pro cinema? Ou será apenas um aglomerado de fumantes? Agora que não se pode fumar dentro dos lugares o povo fica tudo na porta pra fumar... não entendo essa coisa de fumar, credo, Deus me livre, ai, que bom que cheguei, caminhada boa!