Texto muito bom de Eliane Brum, tirado do site da revista Época. Segundo a autora, "uma reflexão sobre barbárie e civiliação". Vale a pena ler.
A cena diante da câmera:
Desde a semana passada circula um vídeo na internet em que uma mulher, totalmente nua, defeca em uma agência bancária de Aracaju. Em seguida, ela se atira no chão, de costas, como se sentisse um grande prazer. Alguém, talvez um funcionário da agência, a cutuca. Ela reage com agressividade, levanta-se e empunha a calcinha suja de fezes como uma arma ao caminhar pelo hall. Depois, volta, limpa as fezes no chão com a roupa. E sai, nua e altiva. A porta da agência é rapidamente fechada. E lá fora ela parece proferir alguns xingamentos.
Isso é o que se vê no vídeo. Mas há algo menos explícito, que não pode ser visto, mas que vale a pena enxergarmos.
A cena por trás da câmera:
Desde o início da gravação, ouvimos uma risada feminina, talvez de quem filma a cena ou está ao lado de quem filma. Não parece ser aquele riso nervoso, que às vezes nos sucede diante de algo inusitado. Parece mais uma risada de alguém que se diverte com a cena. A risada vai aumentando. Ao final, quando a mulher já está fora do banco, a dona da risada faz um comentário: “Está com o demônio no corpo.”
Isso não se vê no vídeo. Apenas ouvimos.
Ao assistir às imagens, senti incômodo. Mas fiquei tão incomodada com a mulher nua e defecando quanto com a mulher filmando a cena. (E aqui vou tratá-la como mulher, por causa da voz, mas não faz a menor diferença se for um homem.) Ao investigar a razão do meu incômodo, percebi que estava diante de dois atos pré-civilizatórios: um óbvio e escancarado, o outro menos visível, mas não menos chocante.
O que é uma mulher nua defecando em uma agência bancária? Somos nós, quando ainda estávamos na natureza – e antes de nos tornarmos cultura. Naquele momento, ela era como um bebê que sente vontade de fazer cocô e faz. Vira-se no chão com visível prazer e alívio. E então é alcançada pelo homem – a Lei – que a cutuca dizendo que ela não pode fazer aquilo. Lembrando-a, portanto, do contrato social. A mulher reage ainda como natureza, ameaçando o homem com suas fezes. E, de repente, algo que também está nela retorna. Ao limpar as fezes no chão, ela volta a se inscrever na cultura.
Não é possível afirmar se a mulher está vivendo algum tipo de surto, mas me parece mais delírio do que protesto. Por que os atos dessa mulher chamam atenção é óbvio. A grosso modo, nos tornamos civilizados no momento em que sacrificamos a nossa natureza, recalcando nossos instintos mais primitivos, para garantir a vida em sociedade. Não podemos mais sair por aí fazendo o que bem entendemos, como defecar nus no meio de uma agência bancária quando sentimos vontade. É preciso procurar um banheiro, chavear a porta, usar papel higiênico, lavar bem as mãos depois e, quem sabe, até aplicar um spray para mascarar o mau cheiro. A repressão de nossos instintos, em todas as esferas do humano, tem um custo alto. Mas, em troca, ganhamos a segurança proporcionada pelo contrato social. A mulher que defeca na agência bancária quebra o contrato que garante a vida em sociedade (na nossa, pelo menos) e por isso se torna perturbadora.
O que me parece é que a mulher que a filma também quebra, mas isso não é interpretado desse modo nem por quem está presenciando a cena nem por quem assiste ao vídeo. Por que não podemos estuprar quem desejamos ou matar quem odiamos? Porque isso nos devolveria a um estado de natureza. Temos de reprimir nossos instintos e, assim, abrir mão de nossa liberdade. Nesse processo, é necessário enxergar o outro como uma pessoa, um semelhante, alguém com direitos, para que o pacto se torne possível. Por que, então, é aceitável que alguém filme a cena de um ser humano em total desamparo e a dissemine na internet? Por que esse ato não é visto como um rompimento do contrato social?
Quem filma a cena e muitos dos que a assistem, a julgar pelos comentários, não reconhecem mais na mulher nua que defeca em público uma semelhante – uma humana. Esse estranhamento os autorizaria a desnudá-la de uma forma muito mais profunda, para além das roupas, diante não apenas dos clientes da agência bancária, mas do mundo inteiro. Ou talvez a reconheçam tanto como uma igual, ao invejar sua liberdade selvagem, defecando no banco enquanto eles esperam na fila para pagar alguma das muitas contas sempre chatas, caras e burocráticas da vida em sociedade, que precisam imediatamente se afastar dela. E afastam-se filmando e expondo o que consideram sua diferença.
Ao filmar a cena e ao difundi-la na rede, embora exponha a mulher por completo, aquela que a filma não a enxerga de fato nem por um segundo. Porque para enxergar é preciso se identificar com o outro. Se em algum momento a mulher que filma tivesse conseguido se identificar com a mulher filmada, acredito que a teria protegido – e não a exposto mais.
Nesse sentido, embora seja a mulher filmada que esteja sem roupas, é a mulher que filma a mais nua entre as duas. É isso, no meu ponto de vista, o mais interessante desse vídeo e o que me faz trazê-lo para esta coluna: ele revela mais da mulher que filma do que da mulher filmada. Mas, em geral, não chama atenção o fato de alguém filmar uma pessoa em total e visível desamparo. Isso é visto como “normal” e aceitável. Minha hipótese, porém, é de que é um ato de barbárie, na medida em que deixa de reconhecer o outro como humano. Ao apontar e amplificar a barbárie que acredita estar na outra mulher, é ela que se torna bárbara.
Assim, ambas – a mulher filmada e a mulher que filma – se igualam ao eliminar o recalque e dar vazão aos seus instintos sem se identificarem uma com a outra. Uma não se reprimiu ao defecar em público, a outra não se reprimiu ao filmar a cena. A primeira exibiu as próprias fezes no ambiente de uma agência bancária, a segunda exibiu as fezes da outra para milhares de pessoas no ambiente da internet. Por que uma causa espanto e a outra não?
Pessoalmente, acho mais ameaçadora ao pacto civilizatório a mulher que filma do que a mulher que caga.
Eliane Brum, para revista Época.